Nos acostumamos a ouvir que o rio de janeiro foi capital do país, sede do “Reino Unido de Portugal e Algarves” e moradia da família real portuguesa. No entanto emerge, cada vez mais, uma abordagem mais cuidadosa sobre as populações originárias da cidade e sobre os milhões de africanos que foram forçadamente enviados para o Brasil na condição de escravizados. A narrativa que prevalece insiste em destacar a cidade como antigo pivô da economia cafeeira, Patrimônio Cultural da Humanidade e balneário tropical para turistas.
Precisamos questionar: quem são os autores dessa história? O que mais nós somos? Que outras camadas de identidade foram e são constantemente invisibilizadas? Pois a história preservada e difundida reflete uma sociedade racista, patriarcal e colonialista. “Quem cede a vez não quer vitória, somos herança da memória. Temos a cor da noite, filhos de todo açoite, fato real de nossa história” (Jorge Aragão, na música Identidade). Precisamos rever a história da cidade do Rio de Janeiro, ouvindo quem há tempos está na linha de frente da resistência. Precisamos escutar as múltiplas vozes da cidade, revisar nossos símbolos e referências: debater sobre perspectivas ampliadas de acesso à memória.
“É visível que o Rio de Janeiro possui um projeto urbano que se baseia na exploração de contrastes. A beleza natural divide espaço com grandes projetos arquitetônicos, a produção cultural vai da bossa nova ao funk, o convívio íntimo entre morro e asfalto, bairros ricos lado a lado com favelas, expondo a desigualdade social. A normalização de uma cidade caótica, que “aprendeu” a conviver com seus problemas históricos e sociais ao invés de solucioná- los, repele qualquer movimento que apresente uma análise mais crítica sobre essa “ordem urbana”.
O projeto vigente de cidade se apropria das desigualdades, ao mesmo tempo que priva o acesso igualitário ao fluxo de produção urbana. É o famoso “Rio de Janeiro para quem?” ou “cidade para gringo ver”. O papo vai ser reto: como "me organizando posso desorganizar?”, como cantou Chico Science? Como disputar a retórica da cidade? Quais são os contra fluxos criados para subverter a ordem urbana carioca?
“Narrar” é um verbo que nos induz a uma noção de ação e movimento. É um verbo que precisa de um sujeito para praticá-lo. Narrar, contar, repassar experiências afetivas é uma capacidade humana possível através de linguagens diversas. O compartilhamento de vivencias é inerente e parte integrante da existência humana. O Rolé Carioca acredita que não há fato, episódio ou história que não mereça ser ouvida, contada, filmada, cantada, representada. Não há grupo que mereça ser silenciado por qualquer julgamento de valor pessoal ou coletivo, bem como não há história que se possa pressupor superior ou inferior a outra. No entanto, o que observamos é uma realidade em que permanecem mecanismos de exclusão e silenciamento de grupos exaustivamente colocados na condição de marginalizados, objetificando-os e desqualificando suas memórias, repertórios, experiências e história. E como Rincón Sapiência diz: “Meu verso é livre, ninguém me cancela, tipo Mandela saindo da cela(...)”, neste bate papo vamos falar com, sobre e para pessoas e grupos que atuam nos movimentos de resistência da cidade do Rio de Janeiro através da adoção das linguagens artísticas como ferramentas eficazes de circulação e preservação de suas proposta para uma nova narrativa de cidade.
A cidade do Rio de Janeiro é um caldeirão de disputas históricas, onde diversos movimentos de resistência social atuam por visibilidade, garantia de direitos e acesso ao fluxo da vida urbana. Dentre esses grupos, a luta histórica das mulheres por uma sociedade mais democrática, com a extinção de normas de gênero e do discurso capacitista, que limitam a atuação feminina na cidade, se destaca. São movimentos que não atuam isolados. Ao contrário. O Rio é uma cidade que preserva uma memória, colonialista, patriarcal e racista, onde os problemas sociais e históricos caminham de mãos dadas. Neste contexto podemos afirmar que as mulheres negras são as mais afetadas pela atual lógica urbana. Durante o período de pandemia da covid-19, por exemplo, o número de violência contra mulheres cresceu 50%, sendo que 68,2% das vítimas são negras. Uma lógica perversa de silenciamento ao feminino que precisa ser revertida. Precisamos estar mais atentos e efetivamente comprometidos com uma revolucionária disputa de narrativa, a de gênero, onde a sociedade tem uma dívida histórica e urgente relacionada ao feminino.