Comparado com os outros bairros, o Alto da Boa Vista é quase que um não lugar
Artigo de Martha Batalha,
Comparado com os outros bairros do Rio, o Alto da Boa Vista é quase que um não lugar. São poucas as pessoas que moram ou trabalham ali. O bairro se tornou “aquele morro distante das festas de casamento”, e a passagem para a praia da Barra, no engarrafamento constante da avenida Edson Passos durante os fins de semana de verão.
É certamente um dos bairros mais preservados do Rio. A constante transformação da cidade – construções antigas que dão lugar a novas, muitas vezes no estilo arquitetônico que mais caracterizou a paisagem carioca, conhecido como “foda-se”, é ali inexistente. O código da cidade proíbe novos empreendimentos no Alto, para preservar os espaços verdes.
Por isso quem visita consegue ver no bairro o mesmo cenário de vinte, quarenta, cinquenta anos atrás. São casarões rodeados por jardins, alguns em ruínas. Há o bar na pracinha, o esqueleto de um prédio de dois andares com uma rampa à direita de quem desce para a Barra, e que durante os anos 80 era a moderna lanchonete onde trabalhavam meninas de saias curtas, que desciam a rampa de patins equilibrando-se com bandejas de hambúrgueres. Um pouco adiante está o que foi um dia o centro do bairro. Sobrados geminados, que nos saudosos tempos do existente comércio local abrigavam uma farmácia, o açougue, a padaria e o boteco.
Ainda descendo pela Barra está, à esquerda, o colégio Santa Marcelina. Porque é o Alto da Boa Vista, e não o Centro, ninguém construiu do lado um estacionamento vertical. Porque é o Alto da Boa Vista, e não Copacabana, ele não ficou espremido entre fileiras de prédio. O colégio segue imponente e solitário, cravado na floresta há mais de 70 anos.
Só essa construção já enche os olhos e desperta curiosidade. O Santa Marcelina foi por décadas um colégio interno e semi interno exclusivo para moças, que ali aprendiam a bordar e costurar, a fazer porcelana, além de todas as boas maneiras necessárias para saberem se portar no eventual casamento com um diplomata. Hoje é um colégio misto, que que ainda mantém no currículo o ensino dos valores cristãos.
O grande prédio amarelado é, na verdade, o disfarce para o que eu considero o segredo mais especial do Alto da Boa Vista. Subindo a ladeira por trás do colégio chega-se em um castelo, construído por uma família alemã em algum momento da primeira metade do século XX. Os iniciados conhecem o local como Castelinho. Nas instalações adjacentes à construção funciona o maternal e jardim de infância do Santa Marcelina. Estudei dez anos no Santa Marcelina, e, nos primeiros dois anos na escola eu almoçava diariamente na sala de jantar do castelo da família alemã. Um lugar iluminado pelos vitrais coloridos de janelas góticas, com paredes decoradas por pinturas de flores e chão de tábuas corridas, por onde irmãs Marcelinas iam e vinham com bandejas de arroz e feijão.
Fazer as refeições neste castelo era um dos privilégios de estudar (e também morar) no Alto da Boa Vista. Os outros eram: sentir menor calor, despertar o espanto em amigos, dizendo que um dia encontramos uma cobra surucucu na sala de jantar e um filhote de gambá entre os meus bichos de pelúcia, crescer com o pé cascudo por andar descalça e subindo em árvores para comer goiaba e jamelão, entrar de penetra nas mansões alugadas pela Globo como cenário para as novelas, e poder dizer aos colegas na escola que tinha visto o Edson Celulari, atravessar a rua aos 9 anos, para bater na casa do então prefeito Marcelo Alencar, e pedir uma entrevista para um trabalho de escola, sair para caminhar e passar por uma casa cujo gramado era ruminado por uma ovelha, andar até a rampa de onde saem as asas deltas e apreciar a imagem na Pedra da Gávea olhando os cariocas, ter uma floresta como quintal e viver perto de lugares com nomes de sonho, como Açude da Solidão e Estrada da Paz e, principalmente, descer para a Tijuca, para a Gávea ou o Centro e sentir-me atordoada com tantos prédios e gente, pensando como era possível viver com tanto ruído.
Martha Batalha nasceu em Recife, Pernambuco, e cresceu no Rio de Janeiro, mais precisamente no Alto da Boa Vista. Foi repórter por muitos anos e criou a editora Desiderata, hoje parte do grupo Ediouro. Mudou-se para Nova York em 2008, onde atuou no mercado editorial. Seu romance de estreia, “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, foi vendido para vários países e, adaptado para o cinema, premiado como melhor filme na mostra Un Certain Regard no Festival de Cannes em 2019. É também autora de "Nunca Houve Um Castelo", uma saga familiar que se passa em Ipanema. Martha vive em Santa Mônica, na Califórnia, com seu marido e dois filhos.