"Cheguei a Santa Cruz em 1981. Eu tinha entre 7 e 8 anos de idade. Até aquele dia, eu nunca havia ouvido falar do bairro. A minha família, como a maioria das famílias da periferia do Rio, era constituída de pais que não nasceram na cidade maravilhosa. Meu pai veio da Paraíba tentar a vida no Rio, e minha mãe do interior de Minas Gerais. Juntos perambularam por vários bairros da cidade, morando de aluguel. Maré, Estácio, Tijuca e finalmente Santa Cruz. No bairro da zona oeste puderam realizar o sonho da casa própria. O início dos anos 80 marca a ida de um grande contingente de moradores das favelas centrais do Rio rumo à zona oeste do município. Santa Cruz foi o bairro que mais recebeu esses novos moradores. O conjunto habitacional Doutor Octácilio Camará, comumente chamado de “Cesarão”, era conhecido como o maior conjunto da América Latina.
O Cesarão naquele tempo tinha as casas pintadas de branco. Olhando do alto do morro careca parecia um cemitério, que aos poucos fora ganhando cor e vida através da intervenção dos moradores. As casas eram tão parecidas que, no primeiro dia, ao dar uma volta de bicicleta, me perdi e levei um bom tempo para encontrar a minha casa. Fomos morar na Rua 50. No início, achei estranho uma rua ser chamada de número, mas depois acostumei. Ali iniciei meus estudos, fiz meus principais amigos e construi a minha identidade. Lembro que a nossa casa foi uma das primeiras a ter telefone. A maioria das vezes que ele tocava era para dar recado a algum vizinho. O fio do telefone nos ligava diretamente aquelas pessoas. Algumas notícias eram boas, outras nem tanto, mas o dever de ir à casa do vizinho chamar para atender o telefone era recompensado pelas várias mães que fui ganhando. No Cesarão nenhum filho tinha só uma mãe. Dona Irene, Dona Eni, Dona Fátima, Dona Creuza, Dona Norma, Dona Neide, Dona Baianinha e Dona Glória (minha mãe de sangue). Foram tantas mães para cuidar da gente que era difícil se perder. O Cesarão era o maior conjunto de mães por metro quadrado que existiu. Em cada rua, uma mãe tomava conta da gente. Alguns filhos perderam-se pelo caminho, outros extrapolaram os limites imaginários do bairro e foram dialogar com a cidade toda.
Cresci ouvindo que Santa Cruz era um lugar muito longe e que lá não tinha nada para fazer. Era chamado de bairro dormitório. Por um bom tempo da minha adolescência eu também acreditei nisso. Mas o teatro me salvou! Costumo dizer que onde o poder público não chega, o tráfico e as igrejas chegam. No Cesarão tem uma igreja em cada esquina, mas foi através da paixão de Cristo que descobri o teatro. Fazíamos uma paixão que circulava por todo conjunto, e foi através do grupo jovem da igreja que migrei para o grupo de teatro do bairro. Justamente o teatro que me levou a conhecer melhor Santa Cruz e circular por todo Rio de Janeiro. Foi o teatro que me abriu os olhos para ver que o meu bairro não era exatamente um lugar sem nada. Descobri que ali já fora moradia da família real e que os jesuítas construíram uma ponte que foi uma fantástica obra de engenharia para época. Outro ponto interessante que fiquei feliz de saber é que tínhamos na Base Aérea de Santa Cruz o Hangar do Zeppelin. Como ele, só existiu três no mundo, e o único que ainda continua de pé é o do nosso bairro.
Saber a história de Santa Cruz foi muito importante na afirmação da minha identidade como morador. Deixei de ser periferia para ser centro. Por isso ao invés de continuar indo para a zona sul bater cabeça nos teatros com tantos atores querendo estar lá, resolvi fundar um grupo no bairro. A Cia do Invisível nasceu com o objetivo de dialogar diretamente com o bairro. Criamos o projeto “Café com Machado” em que levamos uma peça de Machado de Assis para dentro das casas dos moradores. Levar teatro para dentro das casas acabou com a falsa ideia de que as pessoas de Santa Cruz não gostavam de teatro. O que faltava era teatro para elas! O que buscávamos não era catequisar ou tratar aquelas pessoas como sem cultura, mas deixá-las renovar o nosso teatro. Os debates depois das apresentações foram sempre profundos e verdadeiros. Aprendíamos muito com cada apresentação e com as reflexões dos moradores. Inclusive, uma das apresentações foi na casa de uma empregada doméstica que trabalhava em Copacabana e que ouviu da sua patroa que lá na casa dela nunca tinha acontecido uma peça. Ela retrucou dizendo que se quisesse ela podia assistir na casa dela em SANTA CRUZ!
Santa Cruz já teve cinema, hoje não tem mais, mas tem um dos melhores carnavais de rua do Rio e é berços dos Clovis da cidade. Tem grupo de dança, tem Mandioca, tem pipa, tem cine clube, tem vários grupos de teatro, tem Funk, tem pagode, tem a costureiras que bordam o bairro como tema, tem campo de futebol, tem praças, tem meninos e meninas com brilho nos olhos doidos para fazerem um monte de projetos. Tem mães, pais e filhos. Santa Cruz não é o último bairro do Rio, é a porta de entrada da cidade."
Alexandre Damascena é ator, escritor e diretor do Teatro Municipal de Itaguaí. Morador de Santa Cruz desde 1981, foi criado na comunidade do Cesarão e formou-se pela Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna. Criou a Companhia do Invisível, grupo teatral que mescla artes visuais, performances, intervenções e filosofia periférica, e promove o projeto "Café com Machado", que leva peças de Machado de Assis a casas de Santa Cruz. Escreveu este depoimento sobre a região onde vive e atua especialmente para o #RoléCarioca. :)